Sunday 14 February 2021

Dedução e imaginação narrativa

O método dedutivo  de Sherlock Holmes é complexo, pois há várias facetas, a saber: 1. Observação. Dá valor aos pequenos detalhes, aquilo que as pessoas geralmente não prestam atenção (trifles - minúcias). 2. Inferência.  Inferir as consequências  que decorrem dos fatos observados ou os expliquem. 3. Levantamento de possibilidades. Tirando o impossível, o que sobrar, ainda que improvável, pode ter ocorrido. 4. Formulação de hipóteses. 5. Imaginação narrativa. 6. Intuição. Quando os fatos e as deduções levam a um resultado possível, mas ele ainda assim, sente que há algo errado, continua investigando, como no caso do Construtor de Norwood, em que inicialmente as pistas levavam a deduzir a culpa de John Hector McFarland. 

David Stuart Davies, em Bending the Willow - Jeremy Brett as Sherlock Holmes, em que o fã sherloquiano entrevista Jeremy Brett e acompanha algumas produções de episódios da TV Granada -  lembra da intuição: Holmes is able to make the most wonderful subliminal leaps. Holmes é capaz de fazer os saltos subliminares mais impressionantes. 

Claro que, às vezes, ao  omitir etapas da dedução - o que acontece na TV,  mas as etapas podem ser verificadas nos livros - a solução encontrada parece ter sido obtida  por mágica, mas não.  Como o próprio Holmes diz, se ele continuar a ser tão cândido a ponto de explicar suas deduções rápidas, com todas as etapas, as pessoas vão pensar que é fácil. Como fazem quando ele explica. Também convém lembrar que, nos livros, a dedução é feita com extrema rapidez, como quando ele descobre a profissão e alguns traços de personalidade da pessoa observada. Devido ao hiperfoco, Holmes percebe em segundos, e inevitavelmente. Só às vezes as etapas são desdobradas  a posteriori, quando alguém pede para ele explicar.  

Cabe apontar que Jeremy Brett fazia questão de apresentar as deduções conforme aparecem no livro. Em um episódio, lembrado por Davies, embora o diretor achasse que não fosse possível transmitir o texto tal como no livro, Jeremy Brett afirmava que seria possível. Enquanto a equipe fazia um intervalo para almoçar na cafeteria, Brett ficou no estúdio e decorou em meia-hora a fala, que aparece fluente e perfeitamente no início de O intérprete grego, quando Holmes deduz que, afinal, Watson desistiu de investir em ações sul-africanas. 

Mas, como dissemos, a intuição também é usada, em alguns eventos que, apesar da dedução, Holmes fica encafifado com algo que doesn't seem right, não parece certo. E continua investigando.  

A importância da imaginação narrativa explicamos a seguir a partir do episódio Silver Blaze, tanto do livro quanto da série. 

O trecho a seguir contém um pouco de spoilers


Imaginação narrativa 


Em Silver Blaze, para encontrar o cavalo desaparecido em Dartmoor, Holmes exerce a imaginação narrativa, juntamente com a dedução. Ou seja, ele imagina uma pequena história que explique os fatos, desde, é claro, que ele tenha fatos, pois sempre reclama que não dá para trabalhar sem eles. Logo na chegada - na versão original, em texto, de Doyle - Holmes é o último a descer da carruagem (landau), pois fica 'sonhando acordado' - daydreaming - isto é, imaginando. 

Na versão da TV Granada, pequenas alterações são feitas, e Holmes é o primeiro a saltar da carruagem, já se levanta até antes dela parar de vez, mas o restante do trabalho imaginativo está presente. 

Ao examinar o local do incidente em que o treinador foi morto, Holmes descobre um objeto - um tipo de lamparina, ou melhor, wax vesta, uma mini-vela que parece um fósforo - que o Inspetor Gregory não havia percebido. E a descobre porque ele experava encontrar, e esperava encontrar porque tinha uma narrativa (ou 'teoria').

Em seguida, Holmes diz que vai dar uma volta para respirar o ar fresco da tarde, e leva a ferradura de Silver Blade - que o inspetor trouxera - e comenta, 'para dar sorte'. 

No moor (a paisagem típica de Dartmoor), ele e Watson conversam. Holmes parte de uma premissa - cavalos são gregários. Na consequência lógica, o cavalo sem o treinador iria procurar outros cavalos. Então, voltaria ao estábulo em King's Pyland ou iria aos estábulos em Mapleton. Como não foi ao primeiro, deve ter ido em direção ao segundo.

Então, Holmes imagina a cena, o cavalo indo na chuva. Para buscar pistas, não adianta fazê-lo no solo em que estão, que é duro e seco, mas logo adiante há um declive com solo mais fofo e que portanto deve ter formado lama. Os dois vão investigar, e Holmes logo descobre uma pegada, que combina direitinho com a ferradura de Silver Blaze.

Assim, a imaginação narrativa ajudou, e muito, a investigação a partir de obervação, fatos e lógica. 

Diz o detetive: "Veja o valor da imaginação. [...] Nós imaginamos o que poderia ter acontecido, agimos com base na suposição, e nos encontramos justificados". 

Na continuidade do episódio, Sherlock Holmes tem já na mente a história do que aconteceu neste caso, mas pacientemente vai buscar várias pistas para confirmar as suposições, e deixa escapar a conta-gotas o que sabe, deixando seus companheiros perplexos. 


Holmes e a Literatura 

Falamos um pouco da imaginação narrativa. Embora Holmes critique a retórica literária de Watson, ele discretamente a aprecia e também lê literatura. Cita Goethe, Flaubert, George Sand ...  afinal, obras literárias estimulam a imaginação.

No final de The red-headed league (A liga dos ruivos), Holmes esclarece Dr. Watson: ''L'homme c'est rien, l'ouvre c'est tout', escreveu Gustave Flaubert a George Sand." [O homem não é nada, a obra é tudo]. A citação lhe é congenial, pois  ilustra sua atitude de buscar fugir do tédio das coisas comuns da vida. Seu trabalho de consultor-detetive é sua obra, há essa inclinação estética. Holmes é um esteta. Fica claro por que o violino o ajuda a pensar. Estímulos estéticos fazem parte do método. A criatividade, a não-linearidade, a profundidade são assim estimuladas. 

Ele também cita Shakespeare, para se consolar e em memória a seu amigo italiano vitimado pela máfia: 

Golden lads and girls all must,

As chimney-sweepers, come to dust. 

em The Red Circle [O círculo vermelho], filmado na 7ª temporada da TV Granada. O verso inicial do poema de Shakespeare é Fear no more the heat o’ the sun .

"Rapazes e garotos de ouro também 

como os limpadores de chaminés vão 

 desfazer-se em pó".


A Literatura, e a arte em geral, também ajudam a enfrentar os sofrimentos humanos. Que, como detetive, ele sempre se depara e tem de lidar. 



Sunday 7 February 2021

Estudo de personagem

 Observação para quem não leu, nem viu a série: tem um spoiler sobre o texto dos Baskervilles.


Sherlock Holmes é uma figura dark, sombria, assim disse o ator Jeremy Brett, que fez o canônico Holmes da série da TV Granada entre 1984 e 1994. Ele deve estar certo, pois mergulhou no personagem, leu todo o cânone várias vezes e, como acredito e defendo,  é  um co-autor, pois deu mais complexidade, criou um Holmes mais robusto, round character,  ao mesmo tempo fiel ao original, apenas curvando a ramagem - bending the willow

Não era a minha impressão inicial sobre Mr. Holmes. Como todo mundo, eu focava nos poderes de indução, observação, dedução, e todo esse  estereótipo. Mas o personagem é mais complexo. Tem, claro, sua tendência de addict, dependente químico, cuja mente precisa de estímulos constantes, e também sua finesse de esteta. Ora, por influência da série, e da recomendação de Brett,  estou lendo o cânone - os textos de Arthur Conan Doyle - e, claro, acompanhando com a série, em que deliciosa e fluentemente os atores falam os diálogos textualmente - e desta feita percebi de onde vem esse insight de Brett.

E vem justamente de The hound of the Baskervilles - O cão dos Baskervilles - em que, pela maior parte da ação, Holmes está escondido, observando de longe, para não alertar o astuto criminoso que ameça seu cliente. E Dr. Watson, acreditando que seu amigo detetive está em Londres, em suas andanças pelo moor de Dartmoor - uma paisagem pantanosa com grandes elevações rochosas, chamadas de "tor" - acaba percebendo uma figura misteriosa, vista ao contraste da lua, e descobre que esse ente furtivo está habitando uma das construções neolíticas abandonadas - e não poupa adjetivos para descrever essa aparição como figura dark, sombria, misteriosa ...

Pois, o que Dr. Watson está percebendo, e  descrevendo, é justamente seu amigo Holmes - mas o percebe em sombra, e o descreve em sombra. Mas é ele mesmo. É uma parte essencial do personagem, como my darling actor Jeremy Brett percebeu, com sua sensibilidade excepcional. 

Bem, a sombra, em termos junguianos, não é alheia ao self, faz parte, mas não está à frente.

Brett atribui esse caráter do personagem a uma característica da época. Em uma entrevista, e também no que foi reportado no livro de David Stuart Davies, diz: "Lembre-se de que era o tempo de Dracula, de Stoker, de Dr. Jekyll, de Stevenson, e de Dorian Gray, de Wilde. Era um período bem sombrio".  

Quite so. 







Sunday 24 January 2021

Um recado de Jeremy

 Bom, qualquer blog de Sherlock deve dar espaço ao JB. Eu o considero um co-autor que enriqueceu muito o personagem. Que estudou o personagem, e criou uma história pregressa para ele, para dar densidade à atuação. Falarei disso depois, pois ainda estou redigindo. No momento, fiquem com: 

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Jeremy Brett sobre bipolaridade.

Veja aqui o Video - abre em outra aba

Para Brettishers e Sherloquers. Observações, tradução e transcrição, a seguir.

1. Observações. Na época, chamava-se manic depression. Ele recomenda apoiar a Manic Depression Fellowship, que atualmente é a Bipolar UK . Ele chama a atenção para a seriedade da doença, e que se tratada pode conduzir a uma vida profissional e pessoal boa, mas se não tratada pode trazer consequências terríveis. Ele mesmo já tinha uma carreira profissional como ator e convivia com a bipolaridade, não tratada, pois ainda não diagnosticada e porque na profissão de ator, há tolerância para certos comportamentos que outros empregos não toleram. Ele precisou ser tratado, já estava no segundo ano da série televisiva de Sherlock Holmes, e a perda de sua esposa Joan para o câncer desencadeou uma crise enorme - ele não fala disso aqui, falou em entrevistas. Ele fala de seu sucesso profissional para mostrar que é possível, sim, ter uma boa vida profissional e pessoal com bipolaridade, mas que é preciso tratar. E pede doações para a associação MDF - atualmente Bipolar UK - que é conduzida por pessoas com transtornos afetivos e seus familiares. No Brasil, há também uma ou mais associações que precisam de doação, informei um link também nos comentários. A seguir, tradução e transcrição da fala dele.
2. Tradução livre - com alguma atualização para melhor compreensão.
Conscientização sobre Bipolaridade
Eu comecei minha carreira como ator de repertório e ao longo dos anos apareci em muitas peças teatrais em Londres, Nova Iorque, e no Teatro Nacional.
Eu quero dizer o seguinte ... porque a instituição de caridade (a ser lembrada nesta ocasião) é a sociedade de transtorno bipolar - e eu mesmo fui diagnosticado com esse transtorno. Assim, eu sei sobre o que estou falando e eu preciso lembrar-lhes que ainda assim eu fui um ator bem sucedido mesmo antes de admitir que eu tinha uma doença severa. A bipolaridade [depressão maníaca, como se dizia então] é uma doença mental severa que causa mudanças excessivas de humor, com saltos entre uma depressão extrema a uma grande agitação e hiperatividade.
Esses saltos são bem diferentes daquelas mudanças de humor usuais, de um desânimo de segunda feira a um momento de felicidade, que a maioria das pessoas experimenta. Na mania, as pessoas (com a doença) têm uma atividade tremenda e energética, que nem conseguem dormir devido ao rápido fluxo de ideias, vão gastar dinheiro de maneira irracional, têm alucinações e perdem o contato com a realidade. Eu pessoalmente fiz algumas coisas extremamente embaraçosas e destrutivas ... eu, eu mesmo ... Quando se está deprimido, tem-se ataques de pânico, nenhuma energia, e vêm pensamentos suicidas. Uma entre sete pessoas com bipolaridade NÃO TRATADA cometem suicídio, e uma em cem pessoas na população têm esta doença. Ela traz uma forte tensão sobre as famílias e amigos ... e empregadores ... e pode levar ao isolamento, desemprego, perda da residência e falência. Quando eu fui admitido no Hospital Mendsley em 1986, eu estava tão confuso que não conseguia lidar com nada nem ninguém, só conseguia ficar deitado de bruços com os punhos apertados contra meu rosto. Acredito que eu já estava lidando com saltos de humor severos por muitos, muitos anos, mais do que eu gostaria de admitir. Talvez, ser um membro de uma profissão em que ser um pouco louco ajuda, meus humores foram tolerados com mais prontidão do que se eu trabalhasse em um banco ou escola, mas foi meu sucesso que me deu a coragem de admitir publicamente que eu tinha essa doença como um encorajamento para os outros, porque ela não me impediu de estar empregado e de viver uma vida plena e bem sucedida. Esta é uma doença que pode ser tratada, administrada, entre idas e vindas, e entre as crises, pode-se estar bem. Se algo do que eu disse lhe soa familiar, marque uma consulta com seu médico, e contate a Associação (no caso, atualmente a Bipolar UK. É a associação nacional (britânica) de auto-ajuda para pessoas com bipolaridade. [No Brasil, também há equivalentes]. É uma organização notável, porque é amplamente conduzida por pessoas com bipolaridade, e eles sabem mesmo como ajudar. Ela pode oferecer apoio, informação, publicações e uma oportunidade de encontrar outras pessoas em uma situação parecida, e fazer amigos, e aprender. É uma instituição de caridade que gostaria de ampliar seus grupos. É uma maneira excelente de ajudar pessoas que podem ajudar a si mesmas e a outras pessoas. Sua doação será uma contribuição significativa para este trabalho. [A instituição brasileira também aceita doações, link nos comentários].
3. Transcrição
Transcription - with some gaps, there are also self-generated captions by youtube if you prefer.
(Manic Depression Awareness)
I started my acting career in repertory and have over the years appeared in many plays in London, New York and the National Theater.
I want to tell you this ... Because this week's charity is the manic depression fellowship and I myself have been diagnosed as manic depressed ... so I know what I'm talking about and I need to remind you that I have been a successful actor before admitting I had a severe disease. Manic depression is a severe mental illness which causes excessive mood changes with swings from extreme depression to great elation and hyperactivity. These swings are quite different from the range of moods from Monday morning lows to be on top of the world which most people experience. In mania, people will have tremendous activity and energy so that we wouldn't be able to sleep because of the rapid flow of ideas, will spend money irrationally, will have allucinations and lose touch with reality. I personally have done some extremely embarassing and destructive things ... I mean I ... When clinic depressed one has panic attacks, no energy and suicidal thoughts. One in seven people with manic depression untreated will comit suicide, and one in a hundred in the population have this illness. It will bring real strain on family and friends ... and employers ... and can lead to isolation, unemployment, loss of home and bankrupcy. When I was admited in the Mendsley Hospital in 1986, I was so confused I couldn't relate to anything or anyone around me, what I could do was to lie face down with my fists clenched in my face. I believe I've been coping with severe mood swings for many more years than I like to admit. Perhaps being a member of a profession where being a little mad helps my moods were tolerated far more readily than if I worked in a bank or school and is my success which gave me the courage to admit publicly that I had this illness as an encouragement to others that it has not stopped me from being employed and living a fulfilled and successful life. It is an illness which can be treated, managed, the comes and goes, and in between bouts of illness people are well. If any of this sounds familiar, make an appointment with you GP (General Practitioner) and contact the Manic Depression Fellowship (now the Bipolar UK), It's the National (British) Self-Help organization for people with manic depression (bipolar). It is a remarkable organization because it is largely run by people with manic depression so they relly know how to be of help. ...
It can offer support, information, literature and an opportunity to meet other people in a similar situation, and to make friends, and learn about this ... it's a charity [which] wants to set up many more groups. It is an excelent way of helping people help themselves and others ... your donation can make a significant contribution to this work. ...
...
Jeremy Brett (1933-1995)

Jeremy Brett on manic depression video (<= clique para abrir outra aba).


Bipolar UK (<= Clique para abrir outra aba).

Thursday 21 January 2021

Sherlockiana 1

 


Criei este blog para comentar alguns temas que são suscitados pela leitura de livros de Sherlock Holmes, sobre metodologia, e temas correlatos. Tem a finalidade de divulgação breve, e recomenda vivamente que se aprofundem os temas em outras fontes. 

Tive a felicidade de seguir uma recomendação e comecei a assistir à série de Sherlock Holmes da TV Granada, do Reino Unido, com Jeremy Brett como Sherlock. Um traço marcante desta série, que foi produzida entre 1984 e 1994, é que ela procura ser bem fiel ao original, e de fato é. Depois de assistir da primeira vez, estou assistindo de novo, e acompanhando com o original em inglês de Doyle. Como disse Brett em uma entrevista, 'it´s better read'. Ele acha que é melhor a leitura do original, do que qualquer apresentação visual com atores. Não sei se concordo totalmente, acho a performance dele incomparável, e ao ler, vejo-o. Admiro com que facilidade os atores da série falam os diálogos do livro, que afinal são expressões da era vitoriana. Mas falam com muita graça e soa perfeitamente normal e plausível. Grandes atores, também os que fizeram Watson: David Burke e Edward Hardwicke. Bem como outros da série, e a trilha sonora, o cuidado com a ambientação, enfim, totalmente recomendada. Em Bending the willowJeremy Brett as Sherlock Holmes, David Stuart Davies lembra de várias passagens das filmagens, e de como Brett agia. Ele construía o personagem de forma complexa, imaginando sua infância e outras características, compondo um round character, que dava densidade e profundidade ao personagem.  Brett insistia na fidelidade ao texto original. Por exemplo, em uma ocasião, quis reproduzir uma fala tirada inteiramente da escrita de Doyle, embora o diretor achasse que não seria possível fazer isso para televisão. Pois Brett pediu um tempo enquanto todos iam almoçar, e decorou a fala e conseguiu reproduzi-la inteiramente para televisão, na cena em que Sherlock deduz que Watson decidiu não investir em ações. Essa sequência era importante, segundo Brett, por mostrar o método analítico de Holmes.

...

O escritor que inventou o personagem, Sir Arthur Conan Doyle,  viveu na Inglaterra na era Vitoriana, ou seja, no século XIX, mas também no começo do século XX. Ele escreveu o primeiro livro em 1886 e o segundo livro em 1890, portanto já no final do século. E o último conto já em 1927, século XX. Doyle era um escritor com vários interesses e talentos, escreveu romances históricos e outros romances de aventuras e ficção científica.  


O primeiro livro é  A study in scarlet - Um estudo em vermelho - título inspirado em vocabulário das artes plásticas, utilizado metaforicamente para designar um estudo sobre o crime. Nesta história, o dr. John Watson está em Londres após ter sido dispensado como médico do exército na Índia (então uma colônia britânica), e apesar de ter uma pequena pensão, tem dificuldade em alugar boas acomodações. Através de um amigo comum, conhece Sherlock, que está fazendo alguns estudos na faculdade de medicina, embora seus interesses sejam variados e não esteja tentando se graduar. Ambos concordam em  dividir  um bom apartamento em Baker Street, n. 221 B, cuja landlady (proprietária)  é a Mrs. Hudson. 


Watson tenta entender os interesses intelectuais do amigo e faz uma lista, mas logo desiste. De fato, a lista tem algumas incorreções, que depois comentamos.

Mas Sherlock mesmo tenta explicar para ele que todos seus objetos de estudo têm uma finalidade, que servem a seu ofício (que ele ainda não explica qual é), e faz uma metáfora, comparando o cérebro a um sótão (attic), que não pode ficar muito atulhado de conhecimentos inúteis, que não sirvam ao seu propósito investigativo. Assim, por exemplo, Sherlock justifica seu total desconhecimento em muitas áreas, como astronomia, e diz que, se aprender alguma coisa nessas áreas que não lhe interessam, vai logo tratar de esquecer, para não atrapalhar seu raciocínio no que lhe interessa focar.

Bem, isso pode ter sido um exagero de expressão. De fato, ao longo dos contos e romances, Sherlock Holmes vai fazer citações de literatura e autores filosóficos - cita O Martírio do Homem, de Winwood Reade, e Jean Paul Ricther, logo nas duas primeiras estórias. Mostra-se, em um momento de conversação com Watson, ao final de O signo dos quatro, capaz de discorrer sobre interesses diversos, como o Budismo no Ceilão. Também consulta livro de antropologia para entender melhor um caso, nessa mesma narrativa. E cita Goethe em alemão. Então, já vimos que a lista de Watson estava errada, ao dizer que seria  zero o conhecimento de literatura, e exagerada a metáfora do sótão. Porém, ela é útil.

Em primeiro, o detetive, como o pscianalista, é seu próprio instrumento. Ele deve estar afiado nos conteúdos e habilidades que são mais úteis no seu ofício, mas nada impede de conhecer muitas outras coisas, pois o conhecimento se alimenta de conhecimento, e não ocupa espaço. 

Mas é bom que esteja organizado, e nisso a metáfora do sótão funciona. Podemos dizer que o sótão é o espaço de trabalho conceitual de um projeto de pesquisa. Neste, não podemos colocar tudo que conhecemos ou que lemos. Temos que organizar apenas alguns conteúdos, e de forma inteligente. Temos que aplicar as ferramentas cognitivas úteis para os objetivos daquele projeto, mesmo que tenhamos conhecimento de outras ferramentas. Nesta bancada, apenas os conteúdos e ferramentas necessários para a empreitada. 

Então quais seriam esses conteúdos necessários? Antes de selecionar uma bibliografia de referência, deve-se entender qual o objetivo da pesquisa. Como formular esse objetivo, ou objetivos?

Claro que para formular um objetivo, é preciso primeiro conhecer o campo de estudos, saber quais foram os avanços recentes e quais os problemas mais relevantes. 

Conhecer uma área de estudos significa habitá-la, habituar-se a ela, conviver. Com essa convivência você passa a conhecer seus problemas, seja porque você mesmo percebe uma limitação, ou outras pessoas comentam. Assim, uma hora vai aparecer o seu "caso" para desvendar, isto é, um aspecto intrigante do seu campo de estudos. 

E nessa hora que é importante ter sua bancada organizada, com os conteúdos e ferramentas voltados ao caso, e começar a fazer as perguntas importantes, o que intriga no caso. E definir quais as ações que seráo tomadas para responder a essas perguntas.


Eli Say 



Dedução e imaginação narrativa

O método dedutivo  de Sherlock Holmes é complexo, pois há várias facetas, a saber: 1. Observação. Dá valor aos pequenos detalhes, aquilo que...