Criei este blog para comentar alguns temas que são suscitados pela leitura de livros de Sherlock Holmes, sobre metodologia, e temas correlatos. Tem a finalidade de divulgação breve, e recomenda vivamente que se aprofundem os temas em outras fontes.
Tive a felicidade de seguir uma recomendação e comecei a assistir à série de Sherlock Holmes da TV Granada, do Reino Unido, com Jeremy Brett como Sherlock. Um traço marcante desta série, que foi produzida entre 1984 e 1994, é que ela procura ser bem fiel ao original, e de fato é. Depois de assistir da primeira vez, estou assistindo de novo, e acompanhando com o original em inglês de Doyle. Como disse Brett em uma entrevista, 'it´s better read'. Ele acha que é melhor a leitura do original, do que qualquer apresentação visual com atores. Não sei se concordo totalmente, acho a performance dele incomparável, e ao ler, vejo-o. Admiro com que facilidade os atores da série falam os diálogos do livro, que afinal são expressões da era vitoriana. Mas falam com muita graça e soa perfeitamente normal e plausível. Grandes atores, também os que fizeram Watson: David Burke e Edward Hardwicke. Bem como outros da série, e a trilha sonora, o cuidado com a ambientação, enfim, totalmente recomendada. Em Bending the willow: Jeremy Brett as Sherlock Holmes, David Stuart Davies lembra de várias passagens das filmagens, e de como Brett agia. Ele construía o personagem de forma complexa, imaginando sua infância e outras características, compondo um round character, que dava densidade e profundidade ao personagem. Brett insistia na fidelidade ao texto original. Por exemplo, em uma ocasião, quis reproduzir uma fala tirada inteiramente da escrita de Doyle, embora o diretor achasse que não seria possível fazer isso para televisão. Pois Brett pediu um tempo enquanto todos iam almoçar, e decorou a fala e conseguiu reproduzi-la inteiramente para televisão, na cena em que Sherlock deduz que Watson decidiu não investir em ações. Essa sequência era importante, segundo Brett, por mostrar o método analítico de Holmes.
...
O escritor que inventou o personagem, Sir Arthur Conan Doyle, viveu na Inglaterra na era Vitoriana, ou seja, no século XIX, mas também no começo do século XX. Ele escreveu o primeiro livro em 1886 e o segundo livro em 1890, portanto já no final do século. E o último conto já em 1927, século XX. Doyle era um escritor com vários interesses e talentos, escreveu romances históricos e outros romances de aventuras e ficção científica.
O primeiro livro é A study in scarlet - Um estudo em vermelho - título inspirado em vocabulário das artes plásticas, utilizado metaforicamente para designar um estudo sobre o crime. Nesta história, o dr. John Watson está em Londres após ter sido dispensado como médico do exército na Índia (então uma colônia britânica), e apesar de ter uma pequena pensão, tem dificuldade em alugar boas acomodações. Através de um amigo comum, conhece Sherlock, que está fazendo alguns estudos na faculdade de medicina, embora seus interesses sejam variados e não esteja tentando se graduar. Ambos concordam em dividir um bom apartamento em Baker Street, n. 221 B, cuja landlady (proprietária) é a Mrs. Hudson.
Watson tenta entender os interesses intelectuais do amigo e faz uma lista, mas logo desiste. De fato, a lista tem algumas incorreções, que depois comentamos.
Mas Sherlock mesmo tenta explicar para ele que todos seus objetos de estudo têm uma finalidade, que servem a seu ofício (que ele ainda não explica qual é), e faz uma metáfora, comparando o cérebro a um sótão (attic), que não pode ficar muito atulhado de conhecimentos inúteis, que não sirvam ao seu propósito investigativo. Assim, por exemplo, Sherlock justifica seu total desconhecimento em muitas áreas, como astronomia, e diz que, se aprender alguma coisa nessas áreas que não lhe interessam, vai logo tratar de esquecer, para não atrapalhar seu raciocínio no que lhe interessa focar.
Bem, isso pode ter sido um exagero de expressão. De fato, ao longo dos contos e romances, Sherlock Holmes vai fazer citações de literatura e autores filosóficos - cita O Martírio do Homem, de Winwood Reade, e Jean Paul Ricther, logo nas duas primeiras estórias. Mostra-se, em um momento de conversação com Watson, ao final de O signo dos quatro, capaz de discorrer sobre interesses diversos, como o Budismo no Ceilão. Também consulta livro de antropologia para entender melhor um caso, nessa mesma narrativa. E cita Goethe em alemão. Então, já vimos que a lista de Watson estava errada, ao dizer que seria zero o conhecimento de literatura, e exagerada a metáfora do sótão. Porém, ela é útil.
Em primeiro, o detetive, como o pscianalista, é seu próprio instrumento. Ele deve estar afiado nos conteúdos e habilidades que são mais úteis no seu ofício, mas nada impede de conhecer muitas outras coisas, pois o conhecimento se alimenta de conhecimento, e não ocupa espaço.
Mas é bom que esteja organizado, e nisso a metáfora do sótão funciona. Podemos dizer que o sótão é o espaço de trabalho conceitual de um projeto de pesquisa. Neste, não podemos colocar tudo que conhecemos ou que lemos. Temos que organizar apenas alguns conteúdos, e de forma inteligente. Temos que aplicar as ferramentas cognitivas úteis para os objetivos daquele projeto, mesmo que tenhamos conhecimento de outras ferramentas. Nesta bancada, apenas os conteúdos e ferramentas necessários para a empreitada.
Então quais seriam esses conteúdos necessários? Antes de selecionar uma bibliografia de referência, deve-se entender qual o objetivo da pesquisa. Como formular esse objetivo, ou objetivos?
Claro que para formular um objetivo, é preciso primeiro conhecer o campo de estudos, saber quais foram os avanços recentes e quais os problemas mais relevantes.
Conhecer uma área de estudos significa habitá-la, habituar-se a ela, conviver. Com essa convivência você passa a conhecer seus problemas, seja porque você mesmo percebe uma limitação, ou outras pessoas comentam. Assim, uma hora vai aparecer o seu "caso" para desvendar, isto é, um aspecto intrigante do seu campo de estudos.
E nessa hora que é importante ter sua bancada organizada, com os conteúdos e ferramentas voltados ao caso, e começar a fazer as perguntas importantes, o que intriga no caso. E definir quais as ações que seráo tomadas para responder a essas perguntas.
Eli Say